Ele seria devorado.
Não tinha dúvidas de que se continuasse a chamar pelo grupo passaria de caçador à caça.
Já tinha se safado de perigos parecidos imitando urros bestiais, mas com a chuva torrencial daquele início de noite, qualquer predador mais astuto entenderia que aquele animal nervoso era, na verdade, uma presa buscando proteção.
Tentara voltar na trilha revendo o ponto onde se separaram, mas aquelas pegadas fundas, com grossas almofadas no lugar de dedos, mostrava o óbvio: estava sendo seguido por algo maior, mais rápido e acostumado a caçar no escuro.
Caminhava rente a um grande barranco de pedras e barro e, tentando evitar que o ataque viesse de cima, parou para descansar e pensar qual estratégia iria seguir.
A chuva aumentava junto com a escuridão, sentia cada vez mais que aquele seria seu último dia vivo.
Prendeu a lança no barranco como quem busca um apoio para o peso do corpo, em um estalo suas costas se chocaram com as pedras e lama, percebeu com aguda dor que a lança tinha vazado para dentro do terreno!
O desespero tomou conta daquele jovem primata, se com a lança já seria difícil vencer qualquer predador, sem ela até um porco grande o ameaçaria.
Era estranho, mas por mais que fossem criativos a ponto de pensarem em táticas de caça e ferramentas que nenhum outro animal ousou fazer, sentia naquele momento que sua poderosa imaginação não lhe traria vantagem alguma contra a violência brutal daquele mundo.
Começou a cavar com as próprias mãos o caminho que a lança percorrera, era sua única salvação por ora, “por que não voltaram para me procurar? Não eram os mais experientes que lideravam a caça?”, restava ainda um pouco de luz no céu, mas em segundos estaria entregue ao mais asfixiante de seus medos.
Os pedaços de pedra ficavam ainda mais pesados com o barro amolecido, escavava como um louco e, já sem forças, percebeu que a lança estava caída numa pequena câmara fechada pelas rochas.
Uma caverna!
Um grito de entusiasmo ecoou pela parede rochosa, via que a entrada fora fechada por aquele pequeno deslizamento, mas ainda seria segura o suficiente para um animal de sua estatura.
O piso levemente inclinado deixava a água de fora e ele poderia fechar a passagem novamente deixando um furo perfeito para a passagem de ar e da própria lança, um predador nem desconfiaria da origem do golpe.
Havia se enganado sobre sua imaginação…
Seguro em um ambiente seco, quente e protegido, pensou no grupo e na sorte de reencontrá-los vivos, deitou abaixo da lança, assim anteveria qualquer aproximação, mas de tão pequeno, o furo fez a escuridão tomar conta da gruta, o alívio por ter deixado os perigos fora tão intenso que o corpo do nosso frágil caçador despencou no mais profundo sono.
A claridade dentro da caverna o despertara, ficou em vigília alguns segundos, os olhos ainda fechados curtindo o calor e a certeza da segurança, o barulho exterior era filtrado mas ecoava suavemente, protegido por uma bolha rochosa.
O grupo!
Seus companheiros de caça não tinham dado nenhum sinal de vida e com certeza o felino que o perseguira tinha habilidade bem maior para encontrá-los, levantou num pulo para cair no chão em outro!
Nada no Universo o preparara para aquela visão!
Diante de seus olhos, em toda parede oposta, a vista da planície se descortinava bem na sua frente: a trilha onde se perdera, as montanhas no fim do vale, o braço do rio onde tomavam banho, as folhas iluminadas das árvores, até os pássaros revoavam de uma copa para a outra, era possível ver detalhes nas nuvens no céu!
O som seco filtrado o deixava numa cápsula de tempo, um teatro que ele jamais conheceria, cujo personagem principal era a luz!
Passou na frente do furo e sua sombra se fundiu com a imagem projetada, num pulo brincou de pegar folhas que caiam das árvores, viu a imagem do vale surgir no seu peito, a dança frenética levantava uma poeira iluminada, a caverna inteira mergulhada em um denso ritual de aparições exclusivo para seus olhos, como se os espíritos da floresta o saudassem num encontro mágico.
Viu figuras conhecidas se formando na parede, eram lanças iguais as dele, caminhavam na direção da entrada, de tão convencido que aquilo era real, berrou e acenou para a imagem dos companheiros, como se eles também o vissem.
Era uma alegria dupla, o espetáculo quase sagrado dentro daquele teatro de granito e o reencontro com seus pares, começou a cavar e tirar os blocos de rocha da entrada, mas a cada pedra retirada, a imagem no fundo da caverna desaparecia.
Eles correram na direção do som e encontraram o jovem tão afoito que mal conseguiram se falar, ele gritava, pulava, gesticulava e apontava para o interior da cova, a confusão era tanta que pensaram que algo de errado acontecera ali!
O jovem batia na parede de pedra e apontava para o exterior, tentava explicar, sem palavras, que espíritos surgiram para ele, deuses da floresta giraram o mundo de cabeça para baixo bem na sua frente, que aquela caverna era especial, não! Que ele era especial, única criatura que teve aquele privilégio!
Certo que ninguém entendia nada, o pequeno caçador fez um gesto que mudaria para sempre a história daqueles primatas neste planeta:
Com um pedaço de carvão caído, desenhou a cabeça do felino que o perseguia, a lança que carregava e contornou sua mão na parede de pedra.
Freneticamente sentiu que nascera para aquilo enquanto seus companheiros se afastavam, perplexos no mais denso dos silêncios:
Eles tinham compreendido a mensagem. Visualmente.
Clique no botão “leave a comment” abaixo e deixe seu comentário, vou adorar saber o que achou!
Renato, meu nobre. Fico sempre IMPRESSIONADO com sua habilidade de escrita. Não sabia do que se tratava o texto, mas não podia ignorar o e-mail, deixei como não lido para ver agora pela manhã e que sensacional. Fiquei totalmente imerso na história. Estou ansioso pelas próximas!
Parabens pelo 1º capítulo . 19 de agosto, dia mundial da fotografia. E coincidentemente o meu aniversário :-)