Já contei essa história em alguns vídeos e posts do antigo blog: foi uma vendedora de enciclopédias que me provocou a paixão pela fotografia.
Eu lembro como se fosse hoje: no fim do corredor gigante do Canarinhos Camaiore, meu colégio da infância, apareceu uma mesinha com uma senhora vendendo livros vermelhos pesados, os mesmos da biblioteca lá de casa - a Barsa -mas repousava, ao lado dela, uma enciclopédia diferente.
Em vez de verbetes, os tomos eram divididos por assuntos: os Animais, o Universo, Os Oceanos, os Répteis e, em vez da enxurrada de texto, fotos gigantescas de locais, pessoas e animais que eu jamais havia visto.
Foi uma epifania: o sentimento de pertencimento que tive foi arrebatador, aquela era a minha enciclopédia e de mais ninguém! Eu fiquei tão vidrado que enchi o saco do meu pai a semana inteira para comprá-la, que retrucava dizendo que já tínhamos a Barsa nova.
Não houve um só dia que eu não pegasse qualquer um daqueles livros para viajar naquelas fotos, passava horas da tarde folheando a imaginando que havia alguém ali com uma câmera participando daquelas aventuras.
Conforme o tempo foi passando, e a vontade de ser fotógrafo crescendo, duas referências surgiram na minha mente: uma era Irving Penn, com sua fotografia sofisticadamente inalcançável, o Everest da minha futura caminhada.
Um menino com uma câmera.
A outra era de um amigo invisível meu, que também poderia estar andando ali pelos corredores do Canarinhos, mostrando um humor que transbordava em fotos que pareciam montadas de tão impossíveis.
Eu sempre achava que ele não ligaria pela confusão que fazia com a profusão de Ls e Ts em seu nome: Elliott Erwitt.
Nascido em Paris em 1928, filho de pais russos, Erwitt passou a infância em Milão, depois emigrou para os EUA, via França, com a família em 1939. Quando adolescente, morando em Hollywood, mostrou interesse pela fotografia e trabalhou em um laboratório, antes de experimentar fotografia no Los Angeles City College.
Em 1948, mudou-se para Nova York e trocou o trabalho de zeladoria por aulas de cinema na New School for Social Research.
Erwitt era um convite para pegar uma câmera e sair fotografando, mostrava o lado bom dos mestres, incentivava visualmente com humor nas duas pontas: em imagens deliciosas e quando se percebia, não antes da fotografia ter nos enroscado, que o que fazia era absurdamente difícil.
Um segredo de um segredo
Era possível perceber um qualidade diferente em suas imagens, mesmo duelando com os maiores titãs da época de ouro da fotografia, Cartier Bresson, Capa, Doisneau, Edward Steichen, uma foto de Erwitt era facilmente identificada.
Mais do que o flâneur característico da Magum (agência que presidiu nos anos 60), havia uma dança nas suas fotos, como se Gene Kelly carregasse uma câmera.
Foi depois de folhear um livro com suas fotos que resolvi pegar a minha FM2 e “tentar ser fotógrafo”, um sonho distante para aquele pré-engenheiro.
Eu gostei do resultado, tanto da câmera, quanto das fotos, a galeria acima guarda as 4 melhores fotos daquele meu primeiro teste na Urca: estava ali o humor do menino.
Já na faculdade, resolvi “me arriscar”: em busca de um retrato de um mendigo que passava horas contemplando o dia, deitado num colchão dentro do Túnel Acústico, avancei em um buraco negro de fuligem que liga a Gávea/Leblon a São Conrado, meu vizinho de PUC.
Coloquei a câmera na mochila, era um ambiente escuro, peguei um negócio que despejava luz chamado flash, nunca tinha usado, montei na câmera e sai em busca do meu personagem, escondido atrás do sexto pilar da estrutura.
Eu não tinha me preparado para aquilo: sem saber o que fazer, com um engarrafamento indiano atrás de mim e um calor senegalês, perguntei aos berros olhando para a câmera, com o mesmo olhar atordoado com que meu retratado me fitava:
“Posso fazer um retrato seu?”
Silêncio.
Ele se ajeitou no colchão, inclinou a cabeça e consentiu o retrato com um gesto gentil e aristocrático com a mão, não acreditando ainda que alguém o fotografava.
Sorri em total pânico, disparei uma vez apenas. Foi no laboratório da PUC que percebi que a foto não tinha nada a ver com o que imaginara e percebi que precisava entender aquele treco chamado flash, o resto é história para outro post.
Trata-se de reagir ao que você vê, esperançosamente sem preconceito. Você pode encontrar fotos em qualquer lugar. É simplesmente uma questão de perceber as coisas e organizá-las. Você só precisa se preocupar com o que está ao seu redor e se preocupar com a humanidade e com a comédia humana.”
Onipresente.
É fácil se deixar levar pelo fotógrafo de rua Elliott Erwitt, mas ele também recebe facilmente a alcunha bressoniana do “Olhar do Século”: fez fotos dos maiores personagens do século XX, ao lado deles, íntimo, silencioso e próximo.
Jackie Kennedy, Krushev, Nixon, Fidel, Che Guevara, Grace Kelly, Marilyn Monroe, Charles de Gaulle, Muhammad Ali, o lançamento do Sputinik, diga um nome ou evento, surge uma foto icônica.
Foi na quarta passada, dia 29 de Novembro, que Elliot Erwitt manteve a tradição dos grandes fotógrafos: faleceu aos 95 anos de idade, em sua casa e cercado de sua família.
Fiquei realmente triste com a notícia, gostaria de ter me despedido e agradecido por tanta inspiração e estímulo!
Dica de última hora: caso queira ver uma aula aberta com outro fera da fotografia, sugiro clicar na imagem abaixo e seguir o excelente trabalho que o Paulo Marcos, amigo e ex-editor de Fotografia lá da Globo, está fazendo com o GIF, Grupo interessado em Fotografia, deixa um comentário lá e apareça!
Aula Aberta sobre Elliott Erwitt
👉🏻Dia 12 de Dezembro às 18h, estarei lá também ouvindo!
comentários, aqui! :)